Entrevista com o ficcionista e roteirista R. F. Lucchetti Rubens Francisco Lucchetti é considerado o Mestre do Horror Nacional e Papa da Pulp Fiction no Brasil. *Entrevista publicada pelo CultEcléticos originalmente em 2016O que lhe inspirou a se tornar escritor? Por que o gênero terror? Quais são suas influências?
R: Meu interesse pela escrita surgiu praticamente por causa das imagens. Meu pai costumava comprar a revista O Tico-Tico, e eu ficava olhando os desenhos. E ficava desesperado para saber o que estava escrito, já que não sabia ler direito. Recordo também que, certa vez, vi, em rotogravura e em cores, uma página dominical da história em quadrinhos Pafúncio & Marocas, do George McManus, publicada no jornal O Estado de S. Paulo. A história mostrava o Pafúncio roubando um avião e aprontando as maiores confusões. Os desenhos eram tão engraçados, e fiquei desesperado para saber o que estava escrito nos balões. Então, meu pai leu para mim. Isso me obrigou a aprender a ler rapidamente. Não sabia somar um mais um; entretanto, aprendi a ler e, consequentemente, a escrever. Portanto, foi por meio das histórias em dos quadrinhos que surgiu meu interesse pela escrita. Você me pergunta: “Por quê o gênero terror?” Sempre que me fazem essa pergunta, eu me recordo dos contos infantis. Eles não são repletas de bruxas, duendes, castelos assombrados? Não sei como é hoje; mas, quando eu era criança, minha mãe costumava dizer: “Não faça nenhuma traquinagem, senão o homem do saco vem te buscar!” Para mim, o horror e o fantástico fazem parte do cotidiano; basta você olhar o que acontece em torno da gente. Não é fantástico um avião de peso enorme levantar voo? Ou esse robô colhendo e mandando material e informações de Marte? Tudo isso é simplesmente fantástico. É maravilhoso! Minha maior influência são, certamente, as histórias de Edgar Allan Poe. Os primeiros contos que li desse autor foram “O Gato Preto” e “O Coração Revelador”. Eu os li quando tinha uns onze anos de idade. Achei uma leitura impactante. E, sob sua influência, escrevi “A Única Testemunha”, que foi meu primeiro texto publicado. Ele saiu em 31 de outubro de 1942, em O Lapiano, um tabloide semanal do bairro onde eu morava (minha família residia, então, na Lapa, em São Paulo). Qual o melhor livro que você já leu? R: Um dos livros que mais me impressionaram foi O Médico e o Monstro, do Robert Louis Stevenson. Nesse livro, além da célebre novela, tinha também “O Exumador”, um conto impressionante. E, quase simultaneamente, eu assisti a uma versão cinematográfica desse conto: O Túmulo Vazio, estrelado por Boris Karloff, dirigido por Robert Wise e produzido por Val Lewton (eu considero Val Lewton o Edgar Allan Poe. Ele produziu uma série de filmes que é a maior coleção da expressão do medo na Sétima Arte). O Escaravelho do Diabo, da série vaga-lume muito popular e querida entre os estudantes, vai ganhar sua versão cinematográfica. Você acha que isso poderá abrir as portas para que outros livros da série sejam adaptados para o cinema? Já imaginou ‘O Fantasma de Tio William’ sendo adaptado para o cinema? R: Talvez. Tudo vai depender de como for feita essa adaptação de O Escaravelho do Diabo. Quanto a O Fantasma de Tio William, também acho que daria um ótimo filme. É uma história bastante visual. Ao longo das décadas, diversas pessoas me procuraram, propondo adaptá-lo em filme. Mas ficou sempre por isso mesmo. Complementando a pergunta anterior, atualmente muitas produções hollywoodianas adaptadas de livros são um sucesso. Há muitas obras maravilhosas na literatura brasileira, você acha que deveríamos explorar mais esse segmento de adaptação de livros no cinema? R: Não. Porque Cinema é Cinema (é a arte da expressão pela imagem) e Literatura é Literatura. São artes diametralmente opostas. E, depois, nossos roteiristas e diretores não sabem, de maneira geral, adaptar /transformar um texto em imagem. Torna-se literatice. Torna-se algo chato. Mesmo no exterior, poucos são os livros que deram uma boa adaptação/transposição para a linguagem cinematográfica. Um dos poucos, além de O Túmulo Vazio, já citado, é o De Olhos Bem Fechados, o último filme de Stanley Kubrick, inspirado no livro Breve Romance de Sonho, do escritor austríaco Arthur Schnitzler. Outra bom filme baseado num livro é: O Vingador Invisível (dirigido por René Clair), uma correta adaptação do clássico O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie. Falando em cinema, como começou a parceria para os roteiros dos filmes do Zé do Caixão? Você acompanhava as filmagens no set? Como era trabalhar com José Mojica? R: Recordo-me perfeitamente... Era um anúncio, publicado num jornal de São Paulo. Mostrava umas caveiras, uma coruja, uma árvore desfolhada, uma urna funerária, tudo em negativo, e o seguinte texto: “Aguardem! À Meia-Noite Levarei Sua Alma”. Esse anúncio intrigou-me. Fiquei aguardando. Na época, meados de 1965, eu residia em Ribeirão Preto; e um dia, apareceu num dos cinemas da cidade, o São Jorge – um verdadeiro templo do Cinema (ele tinha quase dois mil lugares) que, embora ficasse no centro, era frequentado por pessoas dos bairros e da periferia –, um painel com algumas fotos e um cartaz com o tal título, À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Não posso deixar de mencionar que as fotos não eram nada recomendáveis. O cartaz muito menos (era um calidoscópio de desenhos toscos e não trazia os nomes dos atores nem indicação alguma de quem havia produzido ou dirigido o filme). Apesar disso, comprei um ingresso, entrei na sala (ela estava quase vazia, havia somente umas trinta pessoas em seu interior), sentei e esperei. Quando aquilo começou, tive vontade de sair do cinema, acompanhando o cortejo dos que se desalojavam em direção à liberdade. Eu não estava entendendo nada do que via. Eram imagens estranhas; e também havia um personagem esquisito, desconcertante. Eu já começava a ficar arrependido de não ter ido assistir a Um Amor de Vizinho (com Jack Lemmon e Romy Schneider), que estava sendo exibido no São Paulo, o cinema da elite ribeirão-pretana. Realmente, senti vontade de deixar a sala; porém, pelo que me lembro, nunca saí do cinema sem ver escrito na tela The End ou Fim. De repente, senti um calafrio na espinha. Percebi que estava diante de um clima de tragédia pura. Ésquilo, Eurípedes, Sófocles, enfim, todo o teatro grego estava ali, misturado a Shakespeare. Percebi que assistia a uma fita sem par na História do Cinema. Ao mesmo tempo em que se assemelhava a uma peça apresentada num circo mambembe de vilarejo interiorano, tinha algo de tragédia grega ou do teatro elisabetano. Notavam-se também traços da obra do Marquês de Sade. Às vezes, a desumanização do personagem principal era total, inconcebível. O ator que o interpretava gesticulava, gritava, pulava. Suas feições se multiplicavam em máscaras de ódio e sadismo. Eu nunca vira nada igual. E todas essas cenas iriam me marcar profundamente. E destaco uma delas: a do agente funerário Josefel Zanatas (mais conhecido como Zé do Caixão) comendo uma perna de carneiro e olhando através da janela a procissão da Semana Santa. É uma cena de grande impacto (sobretudo por causa da expressão de deboche no rosto do personagem). Uma cena verdadeiramente memorável. Tão memorável quanto aquela que considero a mais bela cena realizada por Chaplin: a cena de Em Busca do Ouro em que Carlitos, do lado de fora de um bar, olha pela janela e vê, com uma tristeza infinita nos olhos, a mulher amada – mulher amada essa que havia prometido cear com ele na noite de Ano Novo – se divertindo com outros homens... Na tela, o ator continuava sua pantomima. Eu nunca havia presenciado nada que pudesse se assemelhar àquelas sequências desconcertantes, uma mistura de Expressionismo Alemão com a inquietação e a angústia que nos provocam os contos de Edgar Allan Poe... Tudo feito no melhor estilo primitivista. Sabia estar diante de um ser único na cinematografia mundial... um louco genial (não poderia haver outra definição para designar o responsável por aquela tragédia na sua mais pura concepção clássica). Só alguém dotado de um espírito genial – um espírito muito acima de nossa vulgaridade – poderia realizar um espetáculo tão inquietante e paradoxal. Terminado o filme, lembro-me de que ainda fiquei um tempo sentado na poltrona, como um paciente que, após uma longa enfermidade, começa a adaptar-se ao mundo que o rodeia. Deixei o cinema sob o efeito “daquele anestésico”. Minha casa ficava a uns quinze quarteirões; e, durante o percurso, que fiz a pé, Josefel Zanatas não saía de minha mente. Esteve o tempo todo ao meu lado; e, quando entrei em casa, não me recordava sequer do trajeto que havia percorrido. O estranho personagem havia saído comigo do cinema e tinha me acompanhado. Sua personalidade e magnetismo eram por demais marcantes, fazendo com que não se restringisse somente ao celuloide e criasse vida própria. Cheguei até a imaginar que cochilara no cinema e havia imaginado tudo aquilo. José Mojica Marins e Josefel Zanatas se confundiam em minha mente. Criador e criatura eram uno. Mas quem é José Mojica Marins? Fiz essa pergunta a mim mesmo durante vários dias, após ter assistido À Meia-Noite Levarei Sua Alma. E não encontrei para ela uma resposta. Todas as pessoas de meu relacionamento nunca tinham ouvido falar dele; e nenhum jornal ou revista fazia qualquer menção à fita, que permanecera apenas um dia em cartaz em Ribeirão Preto. Foi somente alguns meses mais tarde, em abril de 1966, que alguém citou o nome José Mojica Marins. Foi numa carta endereçada a mim e escrita a quatro mãos pelo meu amigo Sérgio Lima, que na época era secretário da Cinemateca Brasileira, e por sua esposa Leila (os dois já haviam estado em minha casa, para conhecerem o trabalho que o artista plástico Bassano Vaccarini e eu desenvolvíamos à frente do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto). Em determinado trecho dessa carta a Leila dizia: “Sérgio, eu e alguns amigos (...) temos ido frequentemente visitar José Mojica Marins. Sr. Lucchetti, este homem é mesmo uma figura de contos maravilhosos e fantásticos. Capa preta, pálido, barba desalinhada, unhas enormes e verdadeiras; e o mais importante: é a única pessoa que vive uma realidade imaginada! (...) Já falei do senhor a ele e seria delirante o vosso encontro.” Em julho de 1966, mudei-me para São Paulo e fui trabalhar como chefe de escritório da Sokofer, uma loja de ferragens pertencente a uns primos de minha mãe. Eu nem me instalara direito na nova casa, recebi a visita do Sérgio e da Leila. Então, entre outras coisas, eles disseram que iriam marcar o tal “encontro delirante” e que, certamente, “o Mojica e eu iríamos nos dar muito bem.” Passados alguns dias, o Sérgio me telefonou, a fim de avisar que marcara o encontro para aquele dia. Informou-me também de que eu deveria encontrá-los às cinco horas da tarde, no Largo do Paissandu, junto à Fonte das Lagostas, no centro de São Paulo. Na hora marcada, eu já estava parado junto à fonte de mármore branco do Largo do Paissandu. Menos de cinco minutos depois, vi o Sérgio e o sr. Mojica subindo a Avenida São João, vindos dos lados do edifício dos Correios. O sr. Mojica que me estendeu a mão nada tinha em comum com Josefel Zanatas, a estranha e sinistra criatura de barba hirsuta que eu vira em À Meia-Noite Levarei Sua Alma. O sr. Mojica mostrava barba aparada, um sorriso agradável no rosto; trajava um terno escuro de qualidade muito superior ao meu, que fora comprado na Exposição Clipper; usava sapatos pretos bem polidos e totalmente diferentes dos meus, que sempre foram cambaios... O Sérgio Lima, um perfeito dândi (na ocasião, ele vestia um paletó marrom, calça de flanela cinza; usava uma echarpe em torno do pescoço; e fumava cachimbo), começou a caminhar em direção à Rua Barão de Itapetininga. Ele falava muito e, em determinado momento, disse que “a parceria que o Mojica e eu faríamos iria resultar em algo inédito no cinema nacional”. O Mojica não dizia nada; e muito menos eu, que sou extremamente tímido. O Sérgio nos levou a uma casa de chá na Barão de Itapetininga, a rua onde, na época, estavam instaladas as principais boutiques e lojas de grife de São Paulo. Por uma escada de mármore coberta por um tapete carmesim, chegamos a um amplo salão com colunas espelhadas e iluminado por finos lustres de cristal. Cortinas de renda de cor de caramelo escondiam as janelas, e uma brisa suave – vinda do teto através de orifícios camuflados por enfeites de anjinhos – tornava o ambiente extremamente agradável. A um canto, um quinteto de cordas, acompanhado por um piano, executava uma música de Brahms. Ou seria Vivaldi? Várias senhoras da mais fina sociedade paulistana tomavam o seu chá das cinco e, assim que entramos, voltaram seus olhares em nossa direção. Éramos os únicos varões naquele ambiente suntuoso. Tão logo nos sentamos a uma mesa com tampão de vidro e ornamentada com um vaso de flores, surgiu não sei de onde, uma donzela de tailleur cinza, sapatos envernizados de salto alto e um barrete que lhe prendia os cabelos dourados. Ela tinha um rosto encantador e, oferecendo-nos o cardápio, saudou-nos com um “boa-tarde, cavalheiros” que na boca de qualquer outra jovem soaria totalmente falso. Quem fez o pedido foi o Sérgio, que me deu a impressão de ser um assíduo frequentador do local. Assim que a moça se afastou, o Sérgio falou: “Como eu lhe disse, Mojica, o Rubens já tem vários livros publicados, colabora numa infinidade de revistas, escreveu novelas de rádio, scripts para a televisão e fez aqueles filmes desenhados na própria película.” Depois, voltando-se para mim, ele pediu: “Vamos, Rubens, fale um pouco sobre o seu trabalho.” Naquele instante, deu um branco em minha mente. Embora eu tivesse ensaiado exaustivamente o que deveria dizer para impressionar o sr. Mojica, esqueci tudo. Não sabia o que falar. Sentia-me travado. Fui salvo pela chegada providencial de um carrinho de chá de metal polido e rodas de borracha que era empurrado por uma graciosa garota envergando um uniforme azul que contrastava com sua cabeleira platinada. Ela colocou as chávenas em cima da mesa e despejou – de um bule com enfeites da cor de ouro velho – o chá em cada uma delas. Esse espaço de tempo permitiu-me coordenar o pensamento e fiz um relato sucinto sobre minhas atividades. Ressaltei, então, minha predileção pelo Horror e acrescentei que estava trabalhando para uma editora de São Paulo, escrevendo roteiros de histórias em quadrinhos de Suspense e Horror. O sr. Mojica ouviu tudo sem fazer nenhum aparte ou comentário. Em seguida, consultou o relógio e disse que tinha outro compromisso. Mas, antes de nos despedirmos, foi extremamente cortês, convidando-me para ir ao seu estúdio. Umas duas semanas depois, num sábado à tarde, fui a pé até o estúdio do sr. Mojica. O endereço que o sr. Mojica me dera pertencia à coisa mais estranha que se podia imaginar. Tinha sido uma antiga sinagoga e, posteriormente, fora centro espírita. Eu até imaginava que tinha errado o endereço, mas uma plaquinha de metal sobre uma porta de madeira carcomida e lascada indicava: “Cia. Cinematográfica Apolo”. Então, eu não errara o endereço. O estúdio era ali mesmo. A porta estava aberta e dava para uma escada de madeira toda danificada e tão encardida que devia fazer décadas que não via limpeza e que fazia jus a tudo o mais. Se o Conde Drácula houvesse pensado em se mudar para o Brasil e escolhido a cidade de São Paulo para morar, teria escolhido aquele imóvel como lar. Parado diante da porta, hesitei em entrar. E, antes de transpor o umbral, quase desisti. Mas resolvi entrar. Subi cada degrau da escada com cuidado. As paredes também estavam encardidas e esburacadas, mostrando em alguns pontos os tijolos e combinando com o aspecto tétrico daquele covil. De frente para o topo da escada, uma porta aberta deixava ver um pequeno escritório, onde havia uma mocinha sentada a uma escrivaninha. Dirigi-me à mocinha que estava colando, num grande livro de folhas em branco, matérias saídas na imprensa. Ela olhou-me de forma inquisidora. Cumprimentei-a e perguntei pelo sr. Mojica. – Ele foi a um bar aqui perto, mas volta já – respondeu a mocinha. – Pode esperá-lo, sentado ali – e indicou-me um sofá junto à parede. O sofá era tão velho quanto o prédio. Agradeci e falei que iria esperá-lo lá fora. Antes de descer, arrisquei um olhar para o grande salão, repleto de entulho, ao lado do escritório. Era difícil, num simples olhar, detectar o que era tudo aquilo. Ali também estavam alguns rapazes e moças, que me olharam curiosos. No teto, vários símbolos, que me pareceram cabalísticos. E, ao abaixar a vista, percebi algo rastejando... Seria uma cobra? E aquelas coisinhas brancas correndo junto ao rodapé? Seriam ratos? Seria mesmo aquele o endereço da Cia. Cinematográfica Apolo? Desci a escada e fiquei na calçada, procurando analisar a fachada do prédio. Foi quando notei no alto uma grande estrela em relevo e circundada por outras estrelas menores. Quando novo, aquele devia ter sido um edifício suntuoso. Sabe-se lá quando foi sinagoga; mas duas portas largas no térreo indicavam que em alguma época o prédio abrigara uma firma comercial. Ao me voltar, vi o sr. Mojica, acompanhado por dois homens, vindo da esquina. Eu estava um pouco afastado da porta e não sei se o sr. Mojica me reconheceu. Se me reconheceu, não o demonstrou. O trio entrou e subiu as escadas. Esperei algum tempo e entrei atrás, com o coração disparando. Lá em cima, um pouco além da porta do escritório, o sr. Mojica conversava com seus dois acompanhantes. Quando me viu, ele veio, todo sorridente, ao meu encontro. Estava longe de ser aquela pessoa fria e distante do primeiro encontro. Pedi-lhe desculpas por ter vindo sem marcar hora. – Veio no momento certo – disse-me o sr. Mojica, convidando-me a entrar em seu escritório. – Estou precisando urgentemente de um roteirista para o meu próximo filme, que irá se intitular O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Como está muito em voga filmes em episódios, ele terá três histórias. Sentamo-nos no velho sofá. – Você veio mesmo numa boa hora – continuou o sr. Mojica. – Já tenho o dinheiro para realizar esse filme. E eu queria que você escrevesse o roteiro dele. Aquilo era o que eu mais queria, e não deixei de demonstrar o meu entusiasmo. – Como eu disse, é um filme composto de três histórias. Cada uma delas deverá ter mais ou menos meia hora – informou o sr. Mojica. E, voltando-se para a mocinha que continuava colando os recortes, pediu: – Denise, arrume uma folha de papel almaço para que o Lucchetti anote o que eu vou lhe ditar. – Não é necessário, sr. Mojica – repliquei. – Pode falar. – Mas você não vai esquecer? – Não. Pode falar, que eu memorizo. E o sr. Mojica contou as ideias dos três episódios. O primeiro deles seria sobre um velho que se utiliza de olhos humanos nas bonecas que fabrica. O segundo seria sobre um vendedor de balões de gás que se apaixona por uma moça da sociedade que sequer toma conhecimento da sua existência; a jovem morre, e o vendedor a possui. O terceiro episódio teria como tema um cientista que, após ser ridicularizado por um jornalista, irá provar a esse jornalista que “o instinto supera a razão”. Após relatar as três ideias, o sr. Mojica disse: – Vê se dá para me trazer na próxima semana o roteiro do primeiro episódio. Porque, assim, eu já vou filmando, enquanto você escreve o roteiro dos outros dois. Naquela mesma tarde de sábado, comecei a trabalhar no roteiro de O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Não tive dificuldade alguma de escrever o primeiro e o terceiro episódios, “O Fabricante de Bonecas” e “Ideologia”. O mesmo já não aconteceu com o segundo, “Tara”. Lembro que fiz duas ou três versões que não me agradaram. Foi somente ao imaginar o episódio como uma história muda é que consegui escrevê-lo. No sábado seguinte, apareci novamente no estúdio do sr. Mojica, que não ficava muito distante da minha casa. Eu morava na Rua Catumbi, e o estúdio ficava na Rua Casimiro de Abreu. Então, o sr. Mojica pensava que eu estava levando apenas o roteiro do primeiro episódio, como ele havia me pedido. Ficou admirado, ao ver que em tão pouco tempo eu havia escrito o roteiro completo de O Estranho Mundo de Zé do Caixão. O sr. Mojica sentou no sofá e começou a ler o roteiro. Ao seu lado, eu prestava atenção em suas reações faciais. Em momento algum, notei qualquer contração de desaprovação e percebi-o concentrado na leitura. Quando terminou de ler, o sr. Mojica virou-se para mim e falou: – Espantoso! Nem eu teria feito melhor! É impressionante como você conseguiu, já na primeira versão e em tempo recorde, captar o meu pensamento. Penso que foi uma integração perfeita nossa parceria, porque tudo quanto ele me pedia eu conseguia transpor para o papel. E, em nenhuma ocasião, ele me pediu para refazer algum roteiro. Raramente eu acompanhava as filmagens. Eu tinha muito trabalho e não poderia perder tempo. Minha relação com o sr. José Mojica foi a melhor possível. Em nenhum momento, ele fez oposição a nada que escrevi tendo o Zé do Caixão como personagem. Tínhamos diversos planos, incluindo uma boate de Terror e um desenho animado contando as aventuras de Zé do Caixão. Eu escrevi inteirinho o projeto da boate e também o roteiro do desenho animado (tenho eles guardados até hoje). Mas o maior obstáculo era a falta de recursos e apoio para colocarmos em execução esses planos. Alguns conseguimos realizar, como a revista de histórias em quadrinhos O Estranho Mundo de Zé do Caixão, fotonovelas e os programas. Se você pudesse indicar apenas um livro da sua vasta obra, qual seria e por quê? R: O trabalho de que mais me orgulho é um livro que nem sequer foi publicado na íntegra. Intitula-se Música Secreta. Dele só foi publicado, em 1952, um excerto. Música Secreta é composto de uma série de poemas em prosa. Poemas esses que foram publicados originalmente no jornal Diário da Manhã, de Ribeirão Preto, e todos dedicados àquela que seria minha esposa: Tereza. Você tem acompanhado o trabalho de jovens autores brasileiros? Quais tem lhe agradado? R: Dentre os autores, eu posso citar: Giulia Moon e Martha Argel, especializadas em histórias de vampiros; a atriz Nicole Puzzi, possuidora de um estilo totalmente pessoal de narrativas de Horror, passadas à luz do dia; Cesar Alcázar e Duda Falcão; Mariana Portella, que escreveu um conto impregnado da atmosfera lovecraftiana (por falar em Lovecraft, recomendo as antologias Ascensão de Cthulhu e Herdeiros de Dagon, lançadas pela Argonautas em 2014 e 2105, respectivamente, e que reúnem uma plêiade de autores que escreveram histórias baseadas e inspiradas nos relatos de H. P. Lovecraft. Entre eles, Carlos Patati e Leon Nunes). Para finalizar, você certamente dever ser uma influência para jovens autores do gênero terror. Qual mensagem você deixaria para eles e para todos os que tentam se aventurar no mundo literário? R: É ler, ler, ler. Se a pessoa não ler, ela nunca irá escrever. E, depois, exercitar diariamente a escrita: imaginar uma história e procurar contá-la de uma forma inteligível. O principal numa história é ela ter ritmo. E deve-se sempre evitar os lugares-comuns.
0 Comments
Leave a Reply. |
Archives
April 2020
Categories |