Por Marília Duarte O livro Little Women da escritora Louisa May Alcott é um clássico da literatura norte-americana e possui várias adaptações para a televisão e para o cinema, entre elas as versões lançadas nas décadas de 30 e 40 e a mais popular até então lançada em 1994 com Winona Ryder protagonizando. É como se cada geração precisasse de sua releitura daquela história. A nova versão lançada no fim de 2019 (e que chegou no início de 2020 nos cinemas daqui) é a prova de que Little Women precisava ser atualizada com o olhar das mulheres de hoje para dialogar com todas elas. Nessa nova adaptação cinematográfica dirigida por Greta Gerwig, quando Jo March (Saoirse Ronan) embarca em sua carreira de escritora, seu editor (Tracy Letts) dá-lhe alguns conselhos: “Se a personagem principal é uma mulher, a história deve terminar com ela casando ou morrendo.” Uma personagem literária em 1860 deveria se enquadrar em uma definição específica de feminilidade, tornada mais palatável para o consumo da sociedade daquela época. Jo March obviamente acha essas imposições absurdas para a sua escrita e através do uso da metalinguagem o filme vai subvertendo as expectativas que uma obra literária (e cinematográfica) passa a criar sobre cada personagem. O que torna Adoráveis Mulheres particularmente refrescante é que Gerwig trata as quatro irmãs March como iguais, e não como certas ou erradas por cada uma desejar coisas diferentes para si. A irmã mais velha, Meg (Emma Watson), quer se casar e ter uma família ao lado do homem que ama. Jo é a irmã mais de espírito livre e determinada a trilhar seu próprio caminho através da escrita, questionando as tradições de uma sociedade patriarcal. Beth (Eliza Scanlen) é a mais tímida, cuja paixão reside na música, e não na tentativa de encontrar um par romântico. A irmã mais nova, Amy (Florence Pugh), possui um apreço pela beleza e pelo decoro e sonha em se tornar uma pintora famosa. A narrativa do filme é construída de forma perfeita através de idas e vindas no tempo, em vez de se desenrolar cronologicamente como uma adaptação convencional. A adolescência e a idade adulta das irmãs são mostradas em paralelo, com Gerwig, o montador Nick Houy e o diretor de fotografia Yorick Le Saux fazendo a transição entre as duas facilmente distinguíveis por mudanças sutis na paleta de cores usando tons mais quentes no passado e tons mais frios no presente bem como pelos penteados e figurinos das personagens (mais um trabalho excepcional da figurinista Jacqueline Durran). Quando adolescentes, elas são ligadas pela vida em casa, sempre ajudando a mãe Marmee (Laura Dern) a sobreviver, enquanto o pai (Bob Odenkirk) está longe por conta da Guerra Civil. Quando jovens adultas, elas se dispersaram e passaram a avaliar onde cada um de seus desejos as levaram na vida e lidam com as expectativas colocadas nas mulheres da época. Gerwig em seu roteiro dá a cada irmã uma profundidade e um desenvolvimento justo. À medida que elas crescem na adolescência, suas personalidades e desejos díspares as colocam em conflito, mas a diretora nunca permite que nenhuma delas seja vilanizada. O relacionamento entre elas (e suas vidas em geral) possuem suas camadas, e nenhum delas é tratada como tola ou menor pelo que querem, mesmo que todas desejem coisas muito diferentes. Até mesmo o enérgico e galã Laurie (Timothée Chalamet), uma espécie de força do caos que captura a atenção de Jo e Amy não é tratado de forma vazia pelo roteiro. À próposito, o personagem é tão interessante quanto as quatro irmãs e ele também é desenvolvido de forma orgânica. Essas nuances do roteiro são mais claras na dinâmica entre Jo e Amy, que constantemente entram em conflito durante a adolescência se tornando duas pessoas opostas nas personalidades mas iguais no entendimento sobre o mundo em que estão inseridas. Ambas estão encarando à sua maneira a sociedade patriarcal em que vivem, com Amy entendendo que ela se casará por estabilidade financeira, e não por amor, e que seu talento para a arte não é suficiente para garantir sua independência como mulher. Jo submete-se às revisões de seu editor em seus contos e romances, porque ela sabe que não há outra maneira de serem publicados, e ganhar dinheiro para ajudar a sustentar sua família é mais importante que sua integridade artística. São realidades extremamente cruéis e que o roteiro utiliza as próprias personagens para questionar essas imposições machistas da época. Embora a maior parte da atenção de Gerwig esteja em Jo, a imparcialidade com que ela trata toda a família torna Adoráveis Mulheres não apenas uma história sobre perseguir seus sonhos a qualquer custo mas também sobre o valor da bondade. Um dos subplots mais sensíveis do filme é a crescente amizade entre Beth e o Sr. Laurence (Chris Cooper), uma vez que ela lembra bastante a filha falecida dele especialmente no talento musical Há pouco diálogo entre eles e a comunicação se dá mais através de gestos. A cena em que ela toca piano e ele aprecia o som emocionado sentando na escada é uma das cenas mais bonitas e sensíveis do filme. Beth é a personagem com menos tempo de tela que as irmãs, mas protagoniza algumas das cenas mais belas como a cena em que ela já doente conversa com a irmã Jo enquanto as duas estão sentadas na areia da praia. Uma cena que possui um enquadramento tão perfeito e enaltece a beleza da fotografia do filme. E são os momentos mais sensíveis que destacam a ótima trilha sonora composta pelo premiado Alexandre Desplat. Gerwig mantém a história em movimento não apenas pela montagem fluida mas também pelo seu trabalho de câmera que captura cada detalhe que está sendo mostrado. A câmera se move junto com Jo enquanto ela passa de um pensamento para o outro, não apenas transmitindo um senso de sua personagem, mas um sentimento de movimento, crescimento e liberdade. A cena em que ela e Laurie dançam fora da casa durante um baile é tão perfeita e contagiante marcando o carisma dos dois personagens captado através dos movimentos da construção da cena. A onda de energia transmitida por Jo torna o filme ainda mais emocionante quando diminui a sua velocidade, pintando uma imagem de verosimilhança dos altos e baixos da vida. A personagem que é um ícone feminista da literatura possui mais e mais camadas nesta adaptação. E Saoirse Ronan está maravilhosa como sempre. Ouso dizer que esse é o papel que a define como a melhor e mais versátil jovem atriz dessa geração. Todas as personagens têm significado e importância nesta adaptação. Meg não é menor por querer se casar, nem Amy por ser mais presunçosa, nem Jo por ser mais subversiva e revolucionária, nem Beth por ser a mais gentil. Assim como em Lady Bird, filme anterior da diretora, ela permite que seus personagens não sejam convencionais e egoístas. É empolgante ver quatro mulheres distintas que caem em moldes diferentes sendo tratadas com respeito, como se suas decisões e personalidades fossem válidas. E isso também se aplica na personagem da mãe, que em determinadas falas mostra o cuidado em que o roteiro teve em também dar uma certa profundidade a ela. É muito realista a cena em que ela fala sobre sentir raiva todos os dias. Os questionamentos que as mulheres de hoje fazem com mais liberdade sobre uma sociedade patriarcal e machista estão ali também em cada uma das irmãs March. O filme de Greta Gerwig é a adaptação que mais faz o público sentir identificação com algum personagem. Também é a adaptação que teve o cuidado em escalar Louis Garrel como o professor Bhaer. Nas demais versões da história foram escalados atores bem mais velhos, tornando a relação do professor com Jo March algo muito complicado e clichê (algo ainda utilizado no cinema hoje quando personagens de 50 anos tem interesse romântico por garotas de 20). A única incongruência do filme talvez seja comprar a ideia de que Florence Pugh seja mais nova que Eliza Scanlen, mas fora isso, o filme não apresenta nenhuma nota falsa. Há espaço também para alívios cômicos sendo alguns deles protagonizados pela tia March (Meryl Streep). O encantamento que o filme proporciona é a junção do primor que reside no trabalho de Greta Gerwig com o elenco perfeitamente em sintonia. A maneira diferenciada que ela escolheu transferir essa história para a telona é de um requinte formidável. O uso da metalinguagem que permeia a jornada da protagonista Jo March desde o início atinge a nota máxima na maravilhosa sequência final do filme. A história das irmãs March mostra que o amor pelas partes alegres e agridoces da vida faz de Adoráveis Mulheres uma obra cinematográfica essencial e relevante. Trailer legendado: FICHA TÉCNICA:
Título Original: Little Women Direção e roteiro: Greta Gerwig Elenco: Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh, Eliza Scanlen. Laura Dern. Timothée Chalamet, James Norton, Meryl Streep, Chris Cooper, Louis Garrel, Bob Odenkirk, Tracy Letts, Jayne Houdyshell, Maryann Plunkett, Hadley Robinson, Dash Barber, Ana Kayne, Lonnie Farmer, Sasha Frolova, Abby Quinn, Lilly Englert Gênero: Drama Produção: Amy Pascal, Denise Di Novi, Robin Swicord Montagem: Nick Houy Direção de Fotografia: Yorick Le Saux Trilha Sonora: Alexandre Desplat Figurino: Jacqueline Durran Design de Produção: Jess Gonchor Ano: 2019 Duração: 135 min. País: EUA
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